Uma breve pesquisa
retrospectiva comprovará que a Reforma Política tem sido pautada pelos últimos
governos sempre que emerge uma crise da qual o Executivo precisa se livrar,
agendando a mídia com uma pauta diversionista que desvie o olhar e a ira da
opinião pública para o Legislativo. O presente caso não foge a regra.
Desta vez o mote para o recurso
à tática não proveio de um escândalo ou de uma crise de relacionamento do governo
com o Congresso. Veio como reação a uma explosão de indignação popular contra a
corrupção descarada e impune que assola a nação. A outra novidade é o
plebiscito como suposta solução para impasse que impede o consenso sobre a
reforma a fazer.
Dificilmente alguém
discordará sobre a necessidade de aperfeiçoar nosso sistema político e eleitoral.
Porque, então, a Reforma Política não acontece? Simples: mexer na regra do jogo
altera o resultado do jogo. Quem, em tese, deve votar a alteração das regras
seriam os parlamentares que se elegeram com as regras vigentes. Por que razão eles
quereriam mudar leis que os beneficiam?
Um plebiscito e uma Assembleia
Constituinte eleita exclusivamente para aprovar essa reforma seriam a solução?
Será?
Uma Assembleia Constituinte
é um órgão soberano por natureza. Ou seja, nenhum Poder Constituído, a não ser o
povo em consulta direta nas urnas, tem poderes soberanos superiores aos de uma
Constituinte. Portanto, como pretender limitar as atribuições de uma
Constituinte ao debate de um único tema? Se assim fosse, o Congresso Nacional
estaria tentando impor limites a um órgão ao qual é subordinado por definição. Como
impedir um órgão soberano de deliberar sobre outros aspectos da Constituição? Quais
os riscos de mudar a Constituição com as massas em convulsão?
E porque não o plebiscito
então?
Em primeiro lugar, em função
da complexidade dos temas sugeridos para apreciação popular. Tomarei a
liberdade de pegar emprestado um exemplo trazido à luz por Miguel Reale Junior
em recente artigo no Estado de São Paulo. Nesse artigo o jurista abordou a
questão da consulta popular sobre o voto distrital puro; distrital misto ou
continuidade do sistema proporcional. Imaginemos que, diante dessas opções, 35%
dos eleitores aprovassem o voto distrital, 32,5% votassem pelo distrital misto
e outros 32,5% pela continuidade do voto proporcional. Nessa hipótese
migraríamos para o sistema distrital puro num contexto em que 65% dos eleitores
escolheram as outras duas opções.
E as regras devem valer para
2014? Ok. Passo seguinte, então, a Justiça Eleitoral teria que esquadrinhar o
país em milhares de distritos eleitorais. Os distritos teriam tamanhos
diferentes e quantidades diferentes de eleitores. Com isso, tornar-se-ia
possível que um partido viesse a eleger a maioria dos deputados distritais,
sem, no entanto, fazer a maioria dos votos dos eleitores. A soma de vitórias em
distritos com poucos eleitores pode derrotar a soma de vitórias nos grandes distritos.
Algo parecido aconteceu com a vitória de Bush sobre All Gore nos EUA em 2000.
A lógica das eleições
passaria a ser radicalmente diferente, como se pode ver. Todos os partidos
passariam e ter eleições primárias para escolha de seus candidatos distritais. Estatutos
partidários e regras das disputas internas teriam que ser redefinidos. Para
2014, relembro.
Em seguida, elegeríamos os
deputados distritais, com cada partido apresentando apenas um candidato por
distrito em campanhas supostamente mais baratas, pois circunscritas a limites
geográficos mais restritos. No sistema majoritário, portanto, não existem
coligações eleitorais.
Mas, e se o povo resolvesse
votar no plebiscito pelo voto distrital e pela continuidade das coligações
proporcionais ao mesmo tempo? A quem caberia desatar esse nó?
Como explicar para a
população, com 10 minutos de propaganda na TV por dia, durante 30 dias, no que consistem
esses sistemas e qual a virtual implicação das mudanças? Sempre lembrando que a presidente deseja
submeter ao plebiscito, também, a questão do voto em lista e do financiamento
público de campanha, dentre outros temas.
O caro leitor entendeu a
confusão na qual estaríamos metidos se o Congresso não tivesse barrado essas
propostas? É bem verdade que nossos nobres representantes barraram essa
aventura porque não desejam mudar as regras vigentes. Mas, o que importa é que uma
crise institucional dessa magnitude foi bloqueada pelo parlamento, em nome da defesa
da constitucionalidade e da responsabilidade política.
Interessante observar que prefeitos,
governadores, a presidente e esse mesmo Congresso estão aprovando às pressas,
por medo das ruas, inúmeras irresponsabilidades fiscais cujo preço se
apresentará em breve. Isso tudo num cenário de crise econômica emergente, na
qual o problema fiscal é o ingrediente central da volta da inflação.
Aliás, esse é mais um
argumento pelo qual não se deve fazer Reforma Política às pressas. Imagine-se
um plebiscito em pleno ambiente de crise econômica? O preço da
irresponsabilidade, nesse caso, pode ser a desestabilização da Democracia num
momento em que as novas tecnologias estão revolucionando o tecido social e as
formas de participação da sociedade na política, questão que, por ignorância,
tem passado ao largo das propostas de reforma em tramitação no Congresso.
O recurso aos plebiscitos e
referendos tem sido usado como forma de canalizar a participação popular para
caminhos institucionais que legitimem as instituições democráticas nesse
momento em que partidos, parlamentos e governos nascidos nos séculos passados
são atropelados pela participação individual e direta dos cidadãos na ágora virtual
das mídias sociais.
No entanto, é imperativo saber
como eles funcionam e em que contextos eles se aplicam. Nunca é demais lembrar que
governantes populistas e autoritários costumam recorrer aos plebiscitos como
forma de atropelar as instituições democráticas para aprovar mudanças constitucionais
cujo objetivo é perpetuarem-se no poder.
A impossibilidade, aqui
comprovada, de submeter questões complexas a plebiscito, sugere que o referendo
seria mais adequado ao caso brasileiro. Isto é, o Legislativo, se conseguir
chegar a um consenso improvável, elabora novas regras para o sistema político e
eleitoral e submete as novas leis à consulta popular, tal com aconteceu no
referendo das armas.
Vamos adiante.
Existem dezenas de sistemas eleitorais nas diferentes democracias contemporâneas.
Nenhum deles é perfeito e isento de problemas sobre a forma como se processam
as escolhas dos representantes. Todos apresentam vantagens e desvantagens. Apesar
das variações e especificidades que marcam cada um deles, há uma clivagem
central que diferencia os sistemas de tipo consensual dos sistemas de tipo
majoritário. Pouparei o leitor dos detalhes para privilegiar a análise daquilo
que é essencial ao debate presente.
O sistema majoritário (Inglaterra,
por exemplo) baseia-se no predomínio da maioria sobre a minoria e minimiza a
busca da maioria qualificada. Nesse sistema quem ganha leva tudo e o poder das
minorias fica limitado à tentativa de veto às decisões da maioria.
No sistema consensual (Brasil,
por exemplo) ocorre o contrário. Isto é, as regras obedecem à lógica da busca
do consenso envolvendo uma complexa engenharia de construção de maiorias. A
lógica pressupõe ampla participação das forças políticas na coalizão de governo
para construção do mínimo denominador comum possível em torno dos objetivos que
devem ser perseguidos pelo Executivo.
A literatura sobre o tema sugere
que o sistema majoritário adapta-se mais a nações com menor clivagem social,
isto é, baixa diversidade e baixo nível de conflitos regionais, culturais,
religiosos, étnicos ou de outra natureza. Isso porque a lógica da imposição da
maioria pela minoria em sociedades com alta diversidade tenderia a acirrar
conflitos e desestabilizar a Democracia.
Convém observar que boa parte dos
países que adotam o sistema majoritário é parlamentarista. Nesses regimes a
escolha do gabinete de governo cabe ao partido que elegeu a maioria. O povo
vota nos parlamentares e os partidos “escolhem” o gabinete e o primeiro
ministro, de forma indireta, portanto. Outro aspecto importante a considerar é
que a lógica do sistema majoritário tende a prejudicar os pequenos partidos e a
organizar a disputa pelo governo em torno de duas ou três grandes legendas que
conseguem montar estruturas nacionais com presença em todos os distritos
eleitorais.
Já o sistema consensual adapta-se
a nações com maior diversidade e clivagens sociais e culturais. A necessidade
de compor maioria exerce uma coerção interessante sobre a lógica do sistema.
Isto é, para compor maioria eleitoral ou coalizões de governo os partidos são
forçados a abandonar projetos radicais e a flexibilizar suas propostas para
construir consensos possíveis. O mérito desse sistema, portanto, consiste na
contenção dos extremos.
Tomemos como exemplo a situação
hipotética de um país que experimentasse manifestações de massas com alto teor
de insatisfação com o governo. Imaginemos que esse governo resolvesse convocar uma
Constituinte e um plebiscito para aprovar às pressas novas regras eleitorais
que favorecessem seu partido e sua perpetuação no poder. Num sistema de tipo
majoritário esse governante teria maioria parlamentar automática, podendo
atropelar seus adversários e aprovar as leis que bem entendesse, sem negociar e
sem consultar a população.
Num sistema consensual, ainda que
eivado de fisiologismo e corrupção, esse hipotético governante somente
alcançaria sucesso se convencesse seus “aliados” que suas propostas são boas
para a Democracia e para todos os atores políticos e não apenas um artifício
oportunista para privilegiar seu partido na próxima eleição, num pleito no qual
sua derrota apresenta-se como bastante provável.
Raciocinando em tese, declaro-me
simpático ao regime parlamentarista com voto distrital puro. No entanto,
observe caro leitor, como é complexa a situação de um analista que se debruça sobre
temática tão complexa. Julgo que, para o regime majoritário funcionar no
Brasil, teríamos que substituir o povo brasileiro pelo povo inglês e os
partidos e políticos brasileiros pelos partidos e políticos ingleses.
Hipótese descartada; julgo que se
puséssemos os mensaleiros na cadeia punindo o uso do caixa dois nas campanhas, e
se aprovássemos apenas a cláusula de desempenho e o fim das coligações proporcionais,
reduzindo o número de partidos a não mais que sete ou oito já estaríamos dando
grandes passos para constranger a fisiologia e a corrupção que alimentam nosso
sistema político.
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